Política Antimanicomial no Brasil: marcos, disputas e impactos no Judiciário

Conteúdo NEXO Políticas Públicas - Por Victoria Mello Fernandes e Camila Belinaso

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As discussões sobre o fechamento dos Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátricos (ECTPs), especialmente dos manicômios judiciários, e sobre as internações compulsórias de pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei ganharam centralidade nos debates sobre saúde mental, justiça criminal e direitos humanos no Brasil — especialmente após a publicação da Resolução CNJ nº 487/2023.

O tema envolve disputas políticas, resistências institucionais e desafios na efetivação do cuidado em liberdade. Dados do CNJ (2024) demonstram que medidas de segurança seguem frequentemente desproporcionais, prolongadas e aplicadas mesmo em delitos de menor potencial ofensivo, produzindo situações de aprisionamento sob o pretexto de tratamento. Apesar das resistências jurídicas, políticas e médicas, a norma é compreendida como um avanço no processo brasileiro de Reforma Psiquiátrica.

Esta linha do tempo reúne os principais marcos da história das políticas manicomiais e antimanicomiais no país, com destaque para o Rio Grande do Sul — estado onde se acompanha o processo de fechamento e posterior desinstitucionalização do Instituto Psiquiátrico Forense (IPF).

1921 — O primeiro manicômio judiciário do Brasil

O Decreto nº 14.831 institui, no Rio de Janeiro, o primeiro manicômio judiciário do país, destinado a pessoas consideradas “loucas-criminosas”. O modelo reforça a lógica de contenção da “periculosidade” e consolida a intersecção entre sistema penal e psiquiátrico.

1925 — Criação do Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) no RS

O IPF é formalmente separado do Hospital São Pedro e passa a operar sob a lógica da custódia psiquiátrica de pessoas inimputáveis em conflito com a lei. Institucionaliza, no RS, um século de políticas estatais centradas na contenção psiquiátrico-penal.

1940 — Código Penal Brasileiro define a medida de segurança

O Decreto-Lei nº 2.848 apresenta a medida de segurança como sanção penal aplicável a inimputáveis, com duas modalidades:
• internação em hospital de custódia,
• ou tratamento ambulatorial.

Institui-se, juridicamente, o elo permanente entre justiça penal e psiquiatria.

1992 — Reforma Psiquiátrica Gaúcha

A Lei Estadual nº 9.716 inaugura a Reforma Psiquiátrica no RS, propondo a substituição do modelo hospitalocêntrico por uma rede territorial de atenção psicossocial. Movimentos sociais, trabalhadores e familiares impulsionaram o processo.

1999 — Caso Ximenes Lopes

A morte do jovem Ximenes Lopes em instituição psiquiátrica privada no Ceará torna-se marco da luta antimanicomial. O caso leva, anos depois, à condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

2001 — Lei 10.216 (Lei Antimanicomial / Paulo Delgado)

Marco central da Reforma Psiquiátrica brasileira, redireciona o modelo assistencial, privilegia o cuidado em liberdade e estabelece direitos e proteção às pessoas com transtornos mentais.

2006 — Condenação do Brasil pela Corte Interamericana

A sentença do caso Ximenes Lopes reconhece a responsabilidade internacional do Estado por negligência na fiscalização de instituições psiquiátricas, fortalecendo o paradigma do cuidado em liberdade.

2007–2009 — Projeto Qorpo Santo (RS)

Projeto interinstitucional voltado à revisão de processos e à desinternação de pacientes do IPF. Resulta em audiências públicas, criação de grupos de trabalho e elaboração de planos de desligamento.

2009 — Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

Promulgada com status constitucional pelo Decreto nº 6.949/2009, reforça direitos, autonomia e participação das pessoas com deficiência, influenciando políticas e interpretações judiciais.

2011 — Criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)

A Portaria nº 3.088/2011 organiza nacionalmente a atenção psicossocial no SUS, priorizando a territorialidade, a intersetorialidade e o cuidado em liberdade.

2013–2018 — GT de Desinstitucionalização (RS)

Grupo de Trabalho interno do IPF, supervisionado pela Justiça, revê casos e articula saídas institucionais com a RAPS, promovendo planos terapêuticos e audiências com municípios.

2014 — Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas

Criado pela Portaria nº 94/2014 do Ministério da Saúde, integra saúde e justiça na revisão das medidas de segurança, com foco nos critérios clínicos e na desinstitucionalização.

2014–2018 — Programa Des’medida (RS)

Inspirado no PAI-PJ (MG), articula RAPS e Judiciário para acompanhar, no território, pessoas em cumprimento de medida de segurança, promovendo cuidado e saídas institucionais.

2015 — Primeira interdição judicial do IPF

Decisão judicial determina interdição do IPF diante das condições degradantes, violações de direitos e permanência indevida de internos já liberados por laudo.

2017–2019 — Projeto Artinclusão

Iniciativa terapêutica baseada na arte, com foco em renda, cidadania e desinstitucionalização. Obras produzidas por internos foram expostas e vendidas, beneficiando autores.

2019 — Nova interdição do IPF

Persistência de irregularidades leva a nova interdição judicial, com laudos e inspeções que confirmam continuidade das violações.

2022 — Ampliação da interdição

A Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas amplia a interdição, constatando problemas estruturais, ausência de equipes, contenções prolongadas e isolamento degradante.

2023 — Resolução CNJ nº 487

O CNJ estabelece diretrizes para implementar a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei 10.216 no processo penal e na execução das medidas de segurança. Consolida a política de cuidado em liberdade.

2023 — Fechamento da porta de entrada do IPF

A Justiça determina a suspensão de novas internações no IPF, diante das condições degradantes e dos laudos padronizados que sustentavam periculosidade sem práticas terapêuticas adequadas.

2023–2024 — GT Interinstitucional do TJRS

Grupo de Trabalho elabora plano estadual alinhado à Resolução 487, revisa fluxos, reavalia perícias, produz relatório técnico e solicita prorrogação de interdição ao CNJ.

2024 — Criação do CEIMPA-RS

O Comitê Estadual Interinstitucional de Monitoramento da Política Antimanicomial é instituído no RS para diagnosticar casos, articular instituições e acompanhar o plano estadual. A primeira reunião está prevista para agosto de 2025.

2024 — EAP-Desinst (Ministério da Saúde)

A Portaria nº 4.876/2024 cria a Equipe de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas (EAP-Desinst), fortalecendo a implementação da política antimanicomial no SUS.

2024–2025 — Comissão Permanente DESINST (RS)

Criada pela Portaria nº 352/2024, vinculada ao IPF, planeja e acompanha a desinstitucionalização dos casos remanescentes, articulando com RAPS, Judiciário, Defensoria e Secretaria da Saúde.

2025 — Desinstitucionalização em curso

Com cerca de 55 pessoas ainda internas e sem novas entradas, o processo marca inflexão histórica no enfrentamento do modelo penal-psiquiátrico. Persistem desafios, especialmente relacionadas à falta de moradia — frequentemente usada como justificativa para manter a internação.

2026 — Prazo para fechamento definitivo do IPF

A Resolução CNJ nº 572 ajusta prazos da 487. O CNJ determina que o Estado apresente informações em novembro de 2025 e cumpra a interdição total do IPF até novembro de 2026.